Maio de 2018 foi um mês tenso. Em Brasília, o clima político e social pesava tanto quanto o ar seco do Planalto Central, enquanto o noticiário não parava: filas quilométricas em postos de gasolina, hospitais sem insumos, brasileiros estocando comida e prateleiras vazias nos supermercados, caminhões estacionados nos acostamentos como se o país estivesse em stand-by. Era a greve dos caminhoneiros, e Eduardo Guardia, então recém-empossado Ministro da Fazenda, encontrava-se no centro do tabuleiro.
Guardia não era político. Nunca quis ser. Técnico, silencioso, avesso a holofotes, construiu sua reputação em décadas de serviço público e no mercado, sempre em torno de um mesmo princípio: disciplina fiscal é condição sine qua non de estabilidade econômica e social. Mas, naquele momento, estabilidade era a última palavra que alguém usaria para descrever o Brasil.
A greve dos caminhoneiros de 2018 parou o Brasil
Foram dias em que cada hora parecia um teste de resistência. Dentro do Palácio do Planalto, ministros se revezavam em reuniões emergenciais. Havia gritos, telefonemas, reuniões improvisadas em salas apertadas. Guardia observava, tomava notas, cruzava cenários: O que estava em jogo não era apenas a economia, era o pulso vital da atividade produtiva do país.
A pressão era brutal: representantes de caminhoneiros exigiam redução imediata no preço do diesel, isenção de pedágio sobre eixos suspensos e garantias de tabela mínima de frete. O país estava parado, literalmente. E cada novo dia de paralisação custava bilhões à economia, derrubava a bolsa, disparava preços dos produtos na prateleira do supermercado (os que ainda tinham estoque) e corroía a autoridade do governo.
Em sua mesa no Ministério, Guardia encarava os números. Sabia que cada centavo subsidiado no diesel significava menos espaço para saúde, educação, investimento. Sabia também que ceder demais poderia passar um sinal perigoso: o de que qualquer grupo organizado, ao bloquear estradas, conseguiria dobrar o Estado.
Mas também sabia que a racionalidade econômica tem seus limites quando o caos se instala.
Em conversas privadas, ponderava com assessores de confiança: “Se cedermos tudo, sacrificamos anos de construção fiscal. Se não cedermos, o país quebra. Como escolher entre dois colapsos?”
Era uma equação sem solução ótima. O presidente Temer queria respostas. Os caminhoneiros queriam gasolina a preço baixo. A população queria o país de volta. E Guardia queria manter a integridade do teto de gastos.
Muitos políticos do passado acreditavam que “Governar é abrir estradas”: eles só não contavam que os caminhoneiros iam se organizar e parar e, junto com eles, parar o Brasil
Naquela semana decisiva, cedeu. Mas cedeu com medidas pensadas: anunciou a redução de R$0,46 no litro do diesel por 60 dias, ao custo de R$9,5 bilhões para os cofres públicos. Articulou com o Congresso uma medida provisória para zerar a Cide sobre o combustível. Autorizou a isenção do pedágio para eixos suspensos e aceitou a construção de uma tabela de frete (que ele mesmo considerava uma “aberração econômica”, mas necessária naquele momento).
Fez o que precisava ser feito para estancar a hemorragia, mesmo que contrariasse suas convicções mais profundas. Muitos o criticaram. Outros o chamaram de realista. Guardia não deu entrevistas exaltadas, nem fez promessas populistas. Apenas manteve a expressão austera de quem entende que às vezes o papel de um técnico não é agradar, mas evitar que o pior aconteça.
Entre a cruz e a espada (ou, melhor: entre o fiscal e o PIB)
Eduardo Guardia não chegou ali por acaso. Graduado em economia pela PUC-SP, com mestrado pela Unicamp, ele representava uma geração de técnicos que emergiu entre os anos 1990 e 2000 com um compromisso claro: trazer racionalidade ao Estado brasileiro. Sua passagem pelo Tesouro Nacional e depois como secretário-executivo da Fazenda nos governos anteriores o colocaram no centro de debates cruciais, como a responsabilidade fiscal, a modernização do sistema financeiro e os limites do gasto público.
Entre as demandas dos caminhoneiros, estava a redução de impostos e do preço do combustível
Mas o governo Temer, onde ocupou o posto máximo da Fazenda, não era um governo comum. Era um governo de transição, nascido de um impeachment traumático, herdeiro de uma economia devastada e de um cenário social fragmentado. Se a década de 2010 começou com as Jornadas de Junho de 2013 e as tensões de 2014, ela desembocou num país ainda em frangalhos em 2016, quando Michel Temer assumiu.
A missão de Temer foi, em grande medida, estancar a crise político-econômica e restaurar a credibilidade fiscal. Sua equipe econômica, da qual Guardia fez parte como braço-direito de Henrique Meirelles, tocou reformas estruturais ousadas: a PEC do Teto de Gastos, a Reforma Trabalhista, o início do debate da Previdência. Em pouco mais de dois anos, o Brasil saiu de uma recessão histórica para um crescimento tímido, porém estável e com grandes reformas estruturais feitas.
Guardia assumiu a Fazenda em 2018 com a tarefa de manter a travessia até as eleições. Sabia que sua gestão não seria de inaugurações ou festas. Era a última trincheira da estabilidade, e ele estava disposto a defendê-la. Mesmo quando isso significou subsidiar combustíveis, algo que, em qualquer outro cenário, ele abominaria.
O pior cargo do mundo
Há quem ache que técnicos não têm alma, que só enxergam números e planilhas. Mas bastava ouvir Eduardo Guardia numa reunião fechada para entender que por trás da frieza havia um homem que sofria com cada concessão feita aos políticos profissionais, e que carregava nas costas o peso de decisões impopulares que poucos teriam coragem de tomar.
Talvez sua maior virtude tenha sido essa: não tentar ser herói. Não se iludir com aplausos fáceis. Saber que, em momentos de crise, o melhor que um gestor pode fazer é impedir que tudo desmorone, mesmo que isso não caiba num discurso bonito.
Guardia morreu jovem, em 2022: aos 56 anos. Mas deixou, no breve e tenso período em que foi Ministro da Fazenda, uma lição que continua válida hoje: governar exige coragem para dizer “não”, mas também sabedoria para saber quando é preciso ceder. Seu legado talvez seja menos visível que o de outros, mas é justamente isso que define os que seguram o país de pé nos bastidores. E como homenagem póstuma, há poucas semanas foi lançado o livro “Estado, economia, desafios fiscais e reformas estruturais no Brasil — Textos em homenagem a Eduardo Guardia” (História Real), uma coletânea de 32 autores assinando 22 artigos inéditos em que destacam aspectos pessoais e profissionais do economista paulista. Um passeio pela vida, obra e legado de Guardia e sua carreira como gestor e professor, os textos formam um panorama de importantes transformações nas políticas públicas e econômicas do Brasil durante as últimas décadas. Recomendo.
Trabalho Remoto em NYC
Essa semana a Faria Lima trabalhou remoto, direto de Nova York: entre 13 e 15 de maio aconteceu a 18ª edição da LatAm CEO Conference do Itaú BBA, que reúne CEOs de grandes empresas latino-americanas, investidores globais e autoridades.
A programação começou na segunda-feira com a segunda edição do N100Y, evento do qual estiveram presentes gigantes do mercado financeiro e corporativo mundial, como Marc Rowan (CEO e Co-fundador da Apollo Global Management), Bill Ackman (CEO e fundador da Pershing Square Capital Management), Gen. David Petraeus (presidente do KKR Global Institute), Fabricio Bloisi (fundador do Ifood e CEO do Prosus), Dan Tapiero (fundador, CEO e CIO do 1RT Partners e 10T Holdings) e Michael Bloomberg (filantropo e fundador da Bloomberg L.P). Nos outros três dias de evento, foram realizadas mais de 1,3 mil reuniões entre 600 investidores e 140 CEOs.
A Inteligência Financeira entrevistou grandes nomes, como Thomas Wu, economista-chefe da Itaú Asset, que destacou a incerteza provocada pela guerra comercial entre EUA e China, os juros altos no Brasil e a expectativa em torno das eleições presidenciais de 2026 como os assuntos que dominaram o evento. Segundo Wu, a percepção dos investidores estrangeiros sobre o Brasil melhorou ligeiramente em termos relativos, mesmo diante de desafios fiscais internos e do custo elevado de capital. Apesar disso, a cautela permanece, principalmente quanto à sustentabilidade de cortes na taxa de juros, condição essencial para novos ciclos de valorização das ações brasileiras. Outro ponto marcante foi a postura mais realista dos CEOs: sem grandes anúncios de expansão, a palavra de ordem é “fazer mais com menos”, um reflexo direto da necessidade de adaptação ao ambiente econômico ainda incerto
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