Em meio às disputas eleitorais do final de semana, que a cada minuto nos surpreendem com bizarrices e o puro suco do Brasil, paramos para comemorar algo que não foi muito falado fora da bolha financeira: o Itaúzão fez 100 anos. O banco laranjinha comemora seu centenário, sendo o maior banco da América Latina, com R$ 2,9 trilhões em ativos e uma carteira de crédito que ultrapassa R$ 1 trilhão.
Mas, como isso foi possível, em um país que até o passado é incerto?
Bem, nós somos o país do BBB: Boi, Bíblia e Bancos. Os dois primeiros ficam para futuras Cartas (até porque, já falamos bastante do agro), vamos para o que gostamos: Bancos.
O Brasil tem um dos sistemas financeiros mais sólidos do mundo: enquanto o resto do mundo caminha para estabelecer transações digitais seguras, o PIX, desenvolvido pelo Banco Central, foi um sucesso estrondoso: de acordo com dados do órgão regulador, em 2023, os brasileiros movimentaram cerca de R$ 17 trilhões via Pix, o que representa um aumento de 57,8% comparado ao ano anterior, quando as movimentações totalizaram R$ 10,89 trilhões. Mensalmente, o Pix está batendo 5 bilhões de transações, movimentando cerca de R$ 2 trilhões. Cerca de 155 milhões de pessoas e 16 milhões de empresas já fizeram ou receberam ao menos um Pix, de acordo com os últimos dados divulgados pelo Banco Central do Brasil
E, falando em Banco Central, esse também é referência internacional: O Banco Central do Brasil foi o vencedor do “Prêmio Banco Central”, sendo eleito o “Banco Central do Ano 2024” em uma premiação internacional conhecida amplamente, a "Central Banking Awards". A premiação reconheceu o papel crucial desempenhado pelo BCB na sociedade brasileira, principalmente desde 2021, quando foi sancionada a autonomia da instituição e os esforços no combate à inflação, na modernização do sistema financeiro nacional, na atuação no cenário global e na mitigação dos impactos das mudanças climáticas no setor financeiro. De 2019 até hoje, o BCB já conquistou 35 prêmios, recebendo reconhecimentos nacionais e internacionais. Obviamente, os bancos privados não destoam dessa tendência, até pela própria regulação que o BC faz no sistema financeiro nacional.
Bancos não são uma coisa recente no Brasil: o mais antigo de todos, o Banco do Brasil, começou a operar em 1808. De 1808 até 2024, muita coisa aconteceu com eles, desde falências bilionárias, patrocínios a campeões mundiais de diversos esportes, a fusões e aquisições gigantescas. Ultimamente, essa história tem ganho uma nova página com o processo de desbancarização e pagamentos digitais.
Tradicionalmente, bancos no Brasil surgiam a partir de capital próprio (na maioria das vezes, familiares) e aliados às necessidades da lavoura e, em menor escala, da indústria. Inicialmente, os bancos de lavoura trabalhavam principalmente fornecendo adiantamento ao plantio, enquanto que os bancos da indústria forneciam empréstimos para a compra de maquinário das pequenas fábricas que surgiam. Os empréstimos para o setor produtivo eram a base da atividade bancária.
E foi exatamente assim que o Itaúzão surgiu: o banco é uma fusão do antigo Itaú, fundado em 1943 em São Paulo, com o antigo Unibanco, fundado em 1924 na querida Poços de Caldas-MG. Em Poços de Caldas, o Unibanco começou como "Casa Moreira Salles", oferecendo soluções financeiras e viabilizando a produção cafeeira daquela região, a principal do país – até hoje, uma das maiores exportadoras de café do mundo – naqueles anos da década de 1920, possibilitando o acesso dos produtores a serviços de crédito e outras pequenas transações de que o interior era carente.
A agência 001 do Itaúzão
Com o tempo e sucesso dos negócios, esses pequenos bancos regionais privados, como a Casa Moreira Salles, foram expandindo sua atuação, passando a oferecer novos serviços como: o desconto de notas promissórias, poupança (afinal, guardar dinheiro debaixo do colchão tinha seus riscos), e empréstimos às pessoas físicas.
Por serem pequenos e terem uma base de clientes concentrada, esses bancos privados regionais eram muito suscetíveis à falência: um banco de lavouras que oferecesse crédito a produtores de café estava muito vulnerável à quebra de safras e à baixa no preço internacional do café, por exemplo.
Ou seja, para a sobrevivência dos negócios, esses pequenos bancos foram gradualmente fundindo suas atividades. Nesse período, ainda, começam a surgir os bancos públicos estaduais, direcionados ao desenvolvimento de cada estado. Muitos desses bancos públicos surgiram sobre a base de um banco privado regional, como foi o caso do saudoso Banespa.
Essa diversificação tanto na base de clientes quanto nos serviços ofertados ajudaram os bancos do Brasil a passar pelas mais diversas crises que o Brasil é campeão em produzir para si. Talvez, a hiperinflação tenha sido a maior delas: com o nível de preços subindo a cada dia, o dinheiro perdia seu valor no tempo e a população ia empobrecendo.
Os bancos passaram a ofertar produtos corrigidos pela inflação — é daqui inclusive que vem o apego de grande parte da população com a caderneta de poupança. Parecia um bom negócio para os dois lados: a população mantinha seu poder de compra e os bancos investiam o dinheiro no famoso “float”, que lá na frente daria origem ao nosso conhecido CDI.
O meio dos anos 90, porém, foi um chacoalhão no mercado bancário, levando a uma forma mais parecida com o que é hoje. Com o controle da hiperinflação, os bancos perderam uma grande fonte de renda. Além disso, as grandes crises da década de 90 foram o golpe de misericórdia e bancos até hoje populares na memória, como o Bamerindus e o Nacional, que todo final de semana aparecia na tela dos brasileiros através de seu patrocínio ao grande piloto Ayrton Senna.
Imagens que vêm com som: a poupança Bamerindus
A coisa foi tão séria que o Banco Central teve que atuar, se não seria uma quebradeira geral. É aquele velho dilema do setor bancário: desconcentrado, mas com grande risco de quebradeira ou concentrado, mas com risco de concentração demais e taxas altas ao consumidor. Bem, a quebradeira já estava iminente, então o BCB foi na direção de atuação direta nos bancos em risco e fusão entre bancos. É desse período que surgem grandes fusões, como a do Unibanco com o Nacional, do HSBC com o Bamerindus, do ABN Amro com o Banco Real, do Santander com o Banespa, além da intervenção direta nos bancos que se fossem fundidos, levariam o comprador à falência também.
Notou a grande presença de bancos gringos nesses processos de fusão?
Então, é porque antes da atuação do BCB nesse período, não era permitida a atuação de bancos comerciais estrangeiros no país (os bancos gringos que atuavam não eram comerciais, mas de investimento, que tem uma regulação diferente).
Além disso, para operar como banco comercial no Brasil, tinha que ter uma carta-patente (tipo uma autorização oficial), que por muito tempo era em número fixo (ou seja, tinha um número máximo de bancos permitidos a atuar). O saneamento do sistema bancário do Brasil da década de 90 foi feito muito através da injeção de capital gringo, que finalmente encontrou oportunidade para atuar no país.
De meados da década de 90 até os últimos anos, o que vimos foi a consolidação desse setor no país, quase eliminando as, até então comuns, quebras bancárias e dando ao Brasil uma expertise em regulação bancária. Tanto é que na crise financeira de 2008, membros oficiais do governo ainda deram uma zoadinha com os EUA, dada a nossa vasta experiência com quebras bancárias.
Ocorre que, como falamos lá em cima, a escolha é entre “desconcentrado, mas com grande risco de quebradeira ou concentrado, mas com risco de concentração demais e taxas altas ao consumidor”. A concentração bancária dos últimos anos, apesar de eficiente no sentido de manter a saúde do sistema financeiro brasileiro, elevou os preços (juros) ao consumidor final. Também levou a uma pequena oferta de produtos alternativos aos clientes, dado que os bancos ofereciam mais os seus “cash cows” (produtos estabelecidos, com baixo rendimento/alto custo para os clientes, no geral), tendo menos incentivo a inovar.
Muitos se ligaram nesse cenário de baixa concorrência e preços altos e começaram concorrer com os bancos de maneira indireta, através de alguns dos produtos que os bancos ofereciam. Aqui temos as fintechs de meios de pagamento, de crédito pessoal ou empresarial, etc, que passaram a concorrer com um nicho de produto específico.
Com os investimentos também não foi diferente. No geral, os bancos ofereciam poucos produtos de investimento, uma vez que dinheiro em conta corrente ou em poupança é uma boa fonte de receita. Aqui entra a figura dos famosos Assessores de Investimentos (AAIs), que começaram uma cruzada contra esse dinheiro parado em conta corrente e em poupança e hoje são os dutos que conectam quem tem dinheiro para investir com os mais diversos produtos de investimento.
Em um ambiente de queda estrutural da taxa de juros básica da economia como tivemos há uns anos, houve a necessidade dos investidores buscarem novos mercados e produtos. Nesse sentido, as assessorias de investimento ganharam espaço e relevância. De acordo com dados mais recentes da B3, ao final do primeiro trimestre de 2024, foi registrado um aumento na base de investidores pessoas físicas na B3 pelo oitavo mês seguido, somando 5,1 milhões de investidores em renda variável e 16,3 milhões em renda fixa. O total de investidores na bolsa brasileira atingiu a marca total de 19,4 milhões de pessoas físicas (descontando as duplicidades de investidores que investem em produtos das duas modalidades), uma alta de 2% no ano. Desde 2020, a base de investidores já cresceu mais de 80%
Os fundos de investimento, que até então dependiam dos grandes bancos para serem distribuídos, também cresceram motivados pelo trabalho dos AAIs como alternativa de conexão com quem gostaria de investir. Inclusive fomentando o surgimento de uma série de novas gestoras de recursos independentes e com estratégias nunca antes disponíveis para o grande público. Não dá para negar que esse movimento foi dirigido pela atuação e capilaridade dos AAIs.
E é exatamente aí que reside a "beleza" dos 100 anos do Itaúzão: além de passar incólume pelas crises financeiras que assolaram o país nesse último centenário, o banco continua investindo em inovação e competitividade, mesmo já sendo líder em um setor historicamente concentrado – a história mostra que ser lideranças vem acompanhada da "maldição da liderança", que é se acomodar na posição. A gestora de recursos do banco é uma das melhores do país, o setor de investment banking já ganhou diversos prêmios internacionais e, curiosamente, o banco é um dos maiores vendedores de iPhone do mundo, devido a um programa de leasing no qual o cliente adquire um dispositivo através de um cartão de crédito do banco, parcelando o bem em até 21 vezes. E, como disse Roberto Setúbal, o lendário CEO do laranjinha, embora o banco seja um "transatlântico", o que torna as manobras (ie, tomada de decisão) demoradas, sempre podem colocar "um barquinho pra dentro". Um dos últimos barquinhos, inclusive, foi a Avenue (a sacada do "green card dos investimentos", inclusive, foi genial), na corrida pela liderança de soluções de investimentos no exterior para brasileiros.
Em um país em que até o futuro é incerto e a seleção masculina de futebol faz a gente duvidar que o Brasil é o país do futebol, os 100 anos do Itaúzão nos mostra que, talvez, a gente seja mesmo o país do BBB. E um dos B's é de bancos.
Aulão!