Uma trama eletrizante, com cenas dignas de um episódio de Billions e passos rasteiros dos dois lados da mesa marcou a história do mercado financeiro do Brasil: a fusão do Pão de Açúcar com a francesa Casino.
Um episódio que envolveu brigas na mídia, reuniões secretas em Paris e até mesmo um antropólogo que negociou um acordo de paz entre o governo colombiano e as FARC. No final, os franceses levaram a melhor e um gostinho amargo de derrota ficou na boca de Abílio Diniz, mas vez ou outra – como há alguns meses atrás – surgem boatos da volta de Abílio (ou melhor, “Biló”) à empresa fundada por seu pai.
Um Precedente
A história do Pão de Açúcar por si só já é um caso de Hollywood, na melhor pegada Succession: fundado em 1948 em São Paulo como uma doceria pelo imigrante português Valentim dos Santos Diniz, em 1959 surge a primeira loja de supermercado do Pão de Açúcar. Dali em diante o crescimento foi acelerado: na década de 80, possuía mais de 45 mil funcionários e 22 tipos de negócios diferentes (e mais uma dívida milionária…).
Ali já tivemos um precedente, uma briga de foice que marcou os Diniz e deu casca à Biló: Valentim distribuiu 38% das ações da companhia de acordo com a produtividade de cada um. As 3 filhas, que não atuavam na empresa, receberam 2% cada, enquanto os filhos Alcides e Arnaldo receberam 8% cada e Abílio, braço-direito do pai, recebeu 16%.
Os almoços em família nunca mais foram o mesmo: isso foi um estopim para uma briga familiar que se arrastou por ano e fez que os irmãos, inconformados, vendessem suas ações à Abílio, que assumiu o controle da companhia em 1991.
Abílio conduziu o negócio com pulso firme e colocou a casa em ordem, mas não sem derramar muito sangue: de início, conduziu uma reestruturação que teve quase 23 mil demissões, venda de todos os negócios que não fossem supermercados e substituições do board da empresa que contava com amigos pessoais da família.
A estratégia deu certo: o Pão de Açúcar, agora um grupo, tornou-se uma das maiores empresas varejistas do Brasil em faturamento, e adicionou ao portfólio do grupo empresas como Ponto Frio e Casas Bahia, em 2009. (Para evitar complicações societárias, vamos tratar tudo como “Pão de Açúcar”, embora, à rigor, as estruturas tiveram outros nomes e envolveram outras marcas.)
Nesse Meio Tempo, Os Franceses…
Em 1999, em meio a dificuldades financeiras, o grupo Pão de Açúcar (GPA) decide vender 24,5% do controle acionário ao grupo francês Casino, que apostava na expansão dos mercados emergentes, em especial do mercado latino-americano.
O acordo deu liquidez ao GPA e permitiu a expansão dos negócios.
Acontece que: em 2005 rolou um acordo de associação, compartilhando o controle da companhia por meio de uma sociedade cujo capital votante se dava na proporção de 50% para os brasileiros e 50% para os franceses. No contrato assinado em 2005, o grupo francês Casino comprou 49% das ações com direito a voto e fez o pagamento dos 2% de ações restantes para assumir isoladamente o controle acionário do grupo em 2012.
Ali, Abílio assinou o contrato que lhe causaria brigas midiáticas, reuniões secretas com Brasília e em Paris e que só foi resolvida com a ajuda de um antropólogo de Harvard.
O Arrependimento Veio
Em 2009, Abílio tentou renegociar o acordo de 2005 com os franceses: tentou a possibilidade de rever a cláusula de dava o controle do Pão de Açúcar aos franceses em 2012 e até mesmo realizar a recompra da empresa, mas os franceses estavam irredutíveis: do outro lado da mesa, capitaneando a Casino, estava Jean-Charles Naouri, que dirigia o grupo desde 2005.
Naouri, considerado um gênio da matemática e retratado como “lobo”, “tubarão” e “predador” pela mídia francesa depois de consolidar o método de entrar aos poucos no capital de empresas familiares em apuros, mas sempre com opção de compra futura - que na maioria dos casos, se tornava fatal, como foi no Grupo Pão de Açúcar. Era o auge da expansão fulminante do Casino por mercados emergentes, sob o comando de Naouri.
Naouri não arredava o pé na decisão de assumir o controle do Pão de Açúcar no Brasil, a joia da coroa do grupo francês e que representava uma grande parte do faturamento do grupo.
Abílio, do outro lado, dizia, em tom de ameaça – segundo Naouri –, que tinha outras opções caso não repensassem a cláusula da tomada de controle.
Briga de cachorro grande.
Maquinações e Uma Mãozinha Muy Amiga
Diante das negativas dos franceses, Abílio não parou de tentar uma solução para não perder o poder decisório da empresa fundada por seu pai. Até que, em 2011, colocou em ação um plano arriscado: tentou costurar a união do GPA com o Carrefour, sem passar o comando do negócio ao sócio francês.
A proposta era promover uma fusão do Pão de Açúcar e o Carrefour no Brasil, trazendo o BNDES como financiador da operação, avaliada em R$3,9 bilhões de reais, que acabaria sendo o terceiro maior acionista na companhia resultante do negócio.
Biló foi bom de papo: convencer o governo que a compra seria estratégica e facilitaria a exportação de produtos brasileiros na gringa. O acordo desenhado por Abílio previa igualdade na decisão entre Casino e o brasileiro, eliminando a possibilidade do grupo francês assumir o controle da operação.
“Uma Expropriação!”
A proposta da união do Pão de Açúcar com o Carrefour chegou a ser aprovada pelo conselho do Carrefour, mas foi vetada pelo sócio francês: a proposta precisava passar pelo conselho da Casino, que sacou o que estava rolando e vetou a operação.
Jean-Charles Naouri ficou furioso com a jogada de Abílio: disse que a proposta era uma “expropriação”, acusou Abílio de fazer reuniões secretas em Paris com executivos do Carrefour e veio pessoalmente ao Brasil se reunir com o BNDES para investigar a operações e dizer um retumbante “não” à operações. Acusou o sócio brasileiro de má-fé e ameaçou acionar órgãos internacionais de arbitragem para pôr fim ao caso. Abílio, do outro lado, dizia que o francês faltava com a verdade.
Na época, rolaram altas entrevistas aos jornais, de ambas as partes, e as colunas de negócios dos jornais eram preenchidas com disse-me-disse, fofocas corporativas e notícias plantadas de ambos os lados.
No fim, o BNDES deu para trás e a proposta de fusão com o Carrefour não vingou.
A Hora Chegou
O fatídico ano de 2012 chegou e ainda sobravam dúvidas de como seria a transição do controle do Pão de Açúcar. Depois da querela com o Carrefour e das dificuldades impostas por Biló para a entrega do controle, a dúvida era sobre sua permanência no conselho da empresa.
A negociação foi tensa e incluiu mediação de um dos maiores especialistas do mundo em resolução de conflitos, o antropólogo americano Wiliam Ury. Ury foi co-fundador do programa de negociação de Harvard e foi apontado como um dos protagonistas no acordo de paz selado entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Embora todos os trâmites só foram resolvidos em 2017, em 2013 –ou seja, com atraso em relação ao previsto – ocorreu o fim da parceria Casino e Diniz, e Abílio foi liberado da cláusula de não-competição.
Era o fim dos Diniz no Pão de Açúcar.
A Player Is Always a Player
Abilio deixou o negócio em 2013 e seguiu para outros negócios.
Transformou-se um dos principais acionistas da BRF (união da Sadia e Perdigão) e, um ano e meio depois, se tornou um dos maiores acionistas do Carrefour. Em 2014, a varejista francesa protagonizou a maior operação de abertura de capital no Brasil, levantando quase R$ 5 bilhões com a venda do restante das ações do GPA que possuía.
No mesmo 2014, a Casino começou a se desfazer de ativos por causa de dívidas do grupo.
Um Retorno Que Queríamos
Em 2021, o Casino, afundado em dívidas, começou a sondar a venda da sua fatia (41,2%) da GPA. Em uma intrincada rede de holdings, a Casino detinha não só o Pão de Açúcar (PCAR3) no Brasil, como também a Assaí Atacadista (ASAI3). O negócio não foi adiante.
Em 2022 o grupo Casino fechou o ano mal das pernas: prejuízo de EUR 316 milhões e uma dívida estimada de EUR 6,4 bilhões ante um faturamento anual de EUR 33,6 bilhões, dos quais metade (EUR 17,8 bilhões) vieram da América Latina, onde possui cerca de 1000 lojas no Brasil, 2,1 mil lojas na Colômbia (com a varejista Éxito), 96 no Uruguai e 33 na Argentina.
Agora em 2023 a Casino fez uma blitzkrieg pra salvar o grupo: primeiro foi follow-on de ASAI3, que levantou quase R$ 4bi e diluiu a participação da Casino de 30% para 11,7%, seguida por uma operação de block-trade que levantou mais R$2,1 bilhões e encerrou a participação dos franceses na atacadista brasileira agora em junho.
Depois, foi um acordo com os credores para remanejar o pagamento dos juros de dívida. A Moody's estima que o Casino precisa pagar 1,2 bilhão de euros (R$ 6,3 milhões) em dívidas que vencem até 2024 e mais 1,8 bilhão de euros (R$ 9,4 milhões) com maturação em 2025.
Por fim, nesta semana, um acordo final foi conquistado: o Casino passará por uma reestruturação e controle do grupo trocará de mãos, indo para um grupo de investidores que aportará recursos na empresa e será liderada por Daniel Kretinsky, o segundo maior acionista do Grupo. Fim das especulações que Abílio poderia voltar ao “seu” Pão de Açúcar. (Ou não?)
O acordo prevê que a transição seja concluída no primeiro trimestre de 2024 e Kretinsky já avisou que não haverá demissão na empresa (200 mil funcionários no mundo, dos quais a maioria está na América do Sul) – à exceção Naouri.
A Queda de Uma Estrela
A declaração do “novo dono” do Casino pode indicar o fim melancólico do “lobo” francês, Jean Charles Naouri.
Alçado ao topo depois de uma trajetória acadêmica brilhante e uma passagem marcante no setor público, Naouri conquistou uma fama de gênio das finanças na França. A fama, porém, começou a ruir depois que os balanços do Casino se anunciavam cada vez mais deficitários - seriam 6,5 bilhões de euros (R$ 32 bi) em dívidas.
Para coroar a trama, Naouri está sendo investigado pelo Ministério Público francês. Em junho, o executivo foi detido para investigações sobre inside trading entre 2018 e 2019. Naouri teria contratado um jornalista para manipular o mercado de capitais em benefício do Casino, entre setembro de 2018 e maio de 2019, além de sugerir e recomendar a compra de ações do grupo francês em seu jornal especializado em finanças.
O famoso jornal Le Monde comentou sobre o tema: o poderoso CEO "deve deixar o mundo do varejo como entrou: sozinho e sem fortuna, depois de protagonizar uma fábula darwinista em que devorou a todos até ser ele próprio devorado".
Se vai se isso mesmo ou não, só o destino dirá. Mas, certamente, esse episódio Pão de Açúcar/Abílio Diniz versus Casino e seus desdobramentos foi, sem sombra de dúvidas, um capítulo do mundo real que surpreenderia muito roteirista de Hollywood