Há 30 anos, em 1º de março de 1994 nascia a URV (leia "u-érre-vê"” e não "urv"), a versão embrionária e menos conhecida do nosso querido (e estável - pero no mucho) real brasileiro. Isso você deve ter ouvido falar por aí essa semana.
O que você não deve ter ouvido falar é da loucura que foi para a criação dessa "moeda imaginária" e das cabeças por trás desse plano mirabolante que nunca tinha sido testado em nenhum lugar do mundo.
O contexto de surgimento do Real/URV você já deve conhecer: o país passava por uma crise hiperinflacionária, em que os preço dos itens podiam dobrar de um mês para o outro, as pessoas recebiam o salário e corriam para o supermercado para fazer a compra do mês e estocar alimentos antes que subissem de preço. O maior inimigo das famílias eram as máquinas etiquetadoras, que atualizavam o preço dos itens do supermercado de um dia para o outro.
A maior inimiga das famílias brasileiras nos anos 80/90
Até então, havia-se tentado de tudo: congelamento de preços (a boa e velha canetada proibindo os supermercados de subir preços), congelamento de salários, depois reajuste automático de salários, confisco de poupança (essa daqui fez estrago), e até os fatídico episódio da Polícia Federal (sempre ela…) ir caçar boi no pasto como tentativa de reduzir a inflação. Ah, claro, sem contar nos enérgicos "fiscais do Sarney" que rondavam os supermercados fiscalizando aumentos "abusivos" nos preços.
Provável que alguém da sua família tenha sido
Acontece que: os planos contra a hiperinflação não deram certo até o início dos anos 90. Não deram certo por diversos fatores como o desequilíbrio fiscal (sempre ele…), a inércia inflacionária, a própria indexação de preços e salários (que repassava a inflação passada para os preços correntes), entre outros.
Mas teve um motivo, em especial, que chamou a atenção dos especialistas à época: a falta de credibilidade na moeda. As pessoas simplesmente pararam de acreditar que a moeda tinha valor. Também, cada vez que iam ao supermercado a mesma nota de mil cruzados comprava menos itens…
Foi daí que, dentre as medidas adotadas pelos idealizadores do Plano Real, no início dos anos 90, estava a criação de uma moeda "de mentirinha": a URV.
Não existia uma nota de papel chamada "URV". O que existiu foi o seguinte: um dia (1 de março de 1994) definiu-se a paridade entre a URV e a moeda da época, tal que 1 URV valia CR$ 647,50. Naquele dia, 1 URV também valia 1 dólar.
As coisas eram todas cotadas em URV, mas pagas com as notas de cruzeiro real. Era aí o pulo do gato: a atualização da URV era diária e definida pelo Banco Central, conforme a variação do dólar. Já os preços em cruzeiro continuavam variando conforme as pessoas achavam que a situação mudaria. Com isso, a cotação de URV e CR$ mudava, mas o preço "real" das coisas só mudava conforme mudava o dólar.
Em 30 junho de 1994, último dia de validade da moeda "de mentirinha", 1 URV já valia CR$ 2.750 reais. Essa ampla variação permitiu a absorção dos aumentos de preços de serviços e produtos ocorridos durante esses três meses, de modo que, com a entrada em circulação das notas de Real, em 1º de junho, todos os preços estivessem alinhados por cima, sem nenhuma defasagem, e passassem a ser denominados na nova moeda, o Real (R$).
Essa ideia de criar uma moeda "fictícia", sem notas em papel, e com atualização diária conforme a variação do dólar e deixando livre sua contraparte em papel (o CR$) foi algo nunca antes tentado no mundo e foi baseado no "Plano Larida", uma ideia desenvolvida pelos economistas Pérsio Arida e André Lara Resende.
Sobre o Plano Larida, há alguns anos o Banco Central do Brasil entrevistou Pérsio Arida, que contou mais detalhes das ideias e do processo de implementação do Real. A entrevista completa pode ser encontrada aqui.
Abaixo, selecionamos alguns excertos:
[BCB] A ideia de uma moeda virtual paralela já havia sido aplicada em algum país?
[Pérsio Arida] Não havia sido aplicada em nenhum país. Era completamente original porque o problema brasileiro era original. Quando manter ativos financeiros em moeda doméstica deixa de ser uma alternativa para preservar seu valor, a economia acaba, na maior parte das vezes, usando o dólar como referência. Foi o que aconteceu na Argentina e na maior parte dos países da América Latina. Mas o Brasil foi original: diante do mesmo problema, a solução foi preservar o valor dos ativos financeiros por meio da correção monetária.
[BCB] Quando a ideia da proposta Larida começou a circular na mídia?
[PA] A proposta foi muito criticada desde a partida. Diziam que era enganação, uma maneira de escapar da tarefa dura que era fazer o ajuste fiscal. E havia também o argumento de que, na verdade, pioraria o problema: como a economia estaria indexada em um único indexador, haveria diminuição das defasagens, e a inflação poderia ir para o infinito. [...]
Cerimônia de transmissão de cargo de presidente do BCB de Pedro Malan (à direita na fotografia) a Pérsio Arida (centro da fotografia).
[BCB] O André Lara Resende era um pouco mais dramático em relação ao plano, não era? Ele tinha a preocupação de que a equipe econômica fosse linchada caso o plano não fosse bem-sucedido?
[PA] Não é que o André era dramático: dramática era a situação. Na minha área, o Banco do Brasil não conseguia acertar o recolhimento do compulsório, e os bancos estaduais ilíquidos, quando não insolventes, sacavam do compulsório, mesmo sob ameaça de intervenção. E a intervenção, por sua vez, era difícil porque era considerada pelos governadores como uma afronta da União aos seus respectivos estados, e o presidente não queria desgaste político. No caso do Banco do Estado do Maranhão, cheguei a tentar uma rota alternativa de pressão. O banco estava negativo em reservas, e a lei me facultava bloquear a remessa do Fundo de Participação do estado. Enviei a ordem de bloqueio ao Banco do Brasil, que era o encarregado do repasse. O presidente do Banco do Brasil gentilmente me telefonou afirmando que não iria cumprir a ordem porque o presidente da República era do Maranhão. Falou que não iria cumprir e cumpriu o que falou. Na área do André, a restrição era mais direta: não subir a taxa-base. Estávamos no Banco Central de mãos atadas, esperando o desastre acontecer. [...]
[...]
[BCB] E quanto à surpresa para o cidadão?
[PA] Esse é, de fato, um ponto interessante, porque todos os planos, até então, inclusive o Plano Collor, haviam sido implementados de surpresa. Eu tive a ideia de implementar o plano em etapas pré- -anunciadas para evitar surpresas e falei com o Fernando Henrique. Ele conta isso em um de seus livros. Tínhamos que diferenciar o Plano Real dos outros planos, sempre preparados na calada da noite. Tínhamos que ser transparentes e avisar passo a passo qual seria a próxima etapa. Nada mais efetivo para ganhar credibilidade do que cumprir as metas anunciadas. A estruturação em etapas daria também maior controlabilidade do plano de estabilização, evitando o que aconteceu no Cruzado. Em especial, o ajuste fiscal tinha que vir antes da troca do padrão monetário; se essa etapa não fosse cumprida, não lançaríamos o programa. No Plano Real, o ajuste fiscal foi feito via Emenda Constitucional e recebeu o sugestivo nome de Fundo Social de Emergência – e não era nem fundo, nem social nem de emergência.
[...]
[BCB] Observando especificamente o comportamento da imprensa, a impressão que se tem é de que houve mais apoio do setor para o Plano Collor do que para o Plano Real.
É verdade. Lembro-me de ter lido um artigo do Arnaldo Jabor, duas semanas antes da conversão de URV em real, e pensar comigo mesmo: finalmente alguém a favor! E as críticas da imprensa e da mídia como um todo geravam enorme insegurança, até mesmo no presidente da República. Na véspera da transição da URV para o real – ou seja, na véspera do dia em que haveria a troca física do padrão monetário, e o real entraria em circulação –, houve um episódio inusitado. Estávamos no Ministério da Fazenda, mais de oito da noite, revisando detalhes da medida provisória que seria editada no dia seguinte, quando Rubens Ricupero, então ministro da Fazenda, pediu que Edmar, Malan e eu, o trio mais senior da equipe, fossemos ao seu gabinete. Lá estava o ministro da Justiça do Itamar. Trazia uma série de perguntas sobre o programa, a que deveríamos responder de imediato. O presidente havia escutado um programa de rádio do Gil Pace, um comentarista da Jovem Pan, comparando a URV a patinar em gelo fino, uma hiperinflação estaria à vista. Ficou inseguro e pediu explicações. Isso na véspera da troca do padrão monetário! Ricupero foi conversar pessoalmente com o Itamar, e acabamos não tendo que responder às perguntas. Com tantas críticas na imprensa, era natural que se sentisse inseguro.
[BCB] A questão das novas cédulas também pode ter tido um impacto psicológico, embora pouco mencionado? Não se tratava de uma cédula carimbada, que transmite uma sensação de provisório, de que vai explodir a qualquer momento. Era uma família de cédulas novas.
[PA] É difícil avaliar, mas, minha opinião, baseada apenas em observações episódicas, é que esse impacto foi importante. Lembro-me das reclamações quanto às moedas: por economia, fizemos moedinhas leves e aquilo incomodou as pessoas. Parecia coisa de segunda linha, incompatível com um padrão monetário sólido. À parte isso, a troca do padrão monetário foi uma operação logística complexa e executada exemplarmente.
[BCB] Existem fotos icônicas das notas e moedas sendo transportadas em canoas no Amazonas, porque precisavam chegar ao mesmo tempo em todos os lugares.
[PA] Exatamente, foi tudo muito planejado.
E nunca mais uma coisa dessas vai acontecer no Brasil, foi uma fenda temporal que permitiu esse plano dar certo.
que história! obrigado por compartilhar!