Nas últimas semanas o mercado sofreu um abalo sísmico de pequeno porte com a notícia que o Japão aumentou sua taxa básica de juros 0,25%, apenas quatro meses após o banco central ter aumentado sua taxa básica acima de zero pela primeira vez em 17 anos.
Para os incautos ou que chegaram há pouco no mercado financeiro, pode ter parecido mais um auê sem sentido do mercado financeiro. Mas, não. Na verdade, se o mercado financeiro é uma festa, os japoneses são quem alugaram o local, escolheram a decoração e contrataram a banda.
Maior Credor Do Mundo
O valor total de ativos financeiros e investimentos mantidos por investidores japoneses no exterior no final de 2023 excedeu o valor de ativos e investimentos mantidos por estrangeiros no Japão na quantia de 471,3 trilhões de ienes, de acordo com os dados oficiais japoneses e com a Reuters.
O Japão é o dono da festa: Evolução dos investimentos internacionais nas mãos de japoneses
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Isso é US$ 3,36 trilhões nas taxas de câmbio de 31 de dezembro e marca um aumento de 51,3 trilhões de ienes, ou US$ 366,5 bilhões, em relação ao ano anterior. Também é um recorde de 84,3% do PIB, um aumento acentuado em relação aos 76,6% do ano anterior e um lembrete da força do Japão no cenário financeiro global.
Como chegamos até aqui?
"Existem quatro tipos de países: os pobres, os ricos, o Japão e a Argentina": normalmente, a gente divide os países entre pobres e ricos, mas esses dois se destacam tanto que acabam criando suas próprias categorias
Enquanto nossos hermanos são um exemplo de um país que já foi muito rico, mas que passou por altos e baixos que acabaram comprometendo seu desenvolvimento (já falamos nisso em edições anteriores dessa vossa encíclica), o caso do Japão é lembrado por ter uma história de superação impressionante.
Depois de ser devastado na Segunda Guerra Mundial, o Japão se reconstruiu e virou uma das maiores potências econômicas do mundo em pouquíssimo tempo. Isso aconteceu graças a um trabalho intenso do povo japonês, muito investimento em educação e tecnologia, e um governo que soube planejar e apoiar o crescimento das indústrias. O Japão saiu do nada e, em poucas décadas, passou a ser referência mundial em áreas como tecnologia e automóveis, algo que poucos países conseguiram com tanta rapidez e eficiência.
Ladeira Acima: Um Passeio Pelo Milagre Econômico Japonês
Após a Segunda Guerra Mundial, o Japão estava em ruínas, com sua economia devastada e sua infraestrutura destruída. No entanto, com a ajuda dos Estados Unidos, através do chamado Plano Marshall Asiático, o Japão recebeu assistência financeira e técnica vital para sua reconstrução. Esse apoio incluiu a recuperação da infraestrutura, o fornecimento de recursos essenciais e investimentos em setores estratégicos, o que deu ao Japão uma base para iniciar sua recuperação.
Sob a ocupação americana, o Japão passou por uma série de reformas econômicas e institucionais profundas. A reforma agrária redistribuiu terras dos grandes proprietários rurais para os camponeses, aumentando a produção agrícola e reduzindo a pobreza. Além disso, as grandes conglomeradas industriais, conhecidas como zaibatsu, foram desmanteladas, promovendo uma economia mais competitiva e menos concentrada. Uma nova constituição foi implementada, introduzindo direitos democráticos e limitando o poder militar, direcionando o país para uma reconstrução pacífica.
Outro fator crucial foi o foco intenso do Japão em educação e inovação. O país investiu pesadamente em seu sistema educacional, criando uma força de trabalho altamente qualificada. As empresas japonesas adotaram práticas de melhoria contínua e inovação, especialmente em indústrias como eletrônicos, automóveis e tecnologia, o que permitiu ao Japão se tornar líder em qualidade e eficiência. Já ouviu falar do Toyotismo e no conceito “ just in time”? Pois é, a indústria automobilística japonesa é um exemplo da qualidade e eficiência que potencializou o milagre econômico japonês.
Japonês gosta de logo com letras, viu: de quantas multinacionais você já comprou?
O governo japonês desempenhou um papel ativo na promoção do crescimento econômico através do Ministério do Comércio Internacional e Indústria (MITI). O MITI identificou e apoiou indústrias estratégicas, como as de automóveis e eletrônicos, oferecendo subsídios, proteção tarifária e financiamento a juros baixos. Essa política industrial ajudou a criar grandes corporações nacionais que se tornaram líderes globais em seus setores, como Toyota, Sony e Honda.
O Japão também adotou uma estratégia orientada para a exportação, produzindo bens de alta qualidade e competitivos internacionalmente. As empresas japonesas conquistaram mercados em todo o mundo, gerando enormes superávits comerciais e acumulando reservas internacionais significativas. Esse sucesso foi impulsionado por uma cultura de trabalho disciplinada, com um forte senso de responsabilidade coletiva e um modelo de emprego vitalício que contribuiu para alta produtividade.
A estabilidade política no Japão, com governos focados no crescimento econômico e no desenvolvimento dos negócios, garantiu a continuidade das políticas de desenvolvimento e aumentou a confiança dos investidores. Além disso, após o desmantelamento das zaibatsu, surgiram as keiretsu, redes de empresas que colaboravam estreitamente e promoviam uma maior eficiência e cooperação entre diferentes setores industriais.
A única vez que um japonês se atrasou: antes da 2a Guerra Mundial o Japão não era um país rico. O “Plano Marshall asiático” e Japão deram um jeito nisso e o país alcançou o nível de desenvolvimento e riqueza dos países mais ricos do mundo
Nas décadas de 1950, 1960 e 1970, o Japão experimentou um crescimento econômico sem precedentes, com taxas de crescimento do PIB que chegaram a 10% ao ano. O país modernizou rapidamente sua infraestrutura, investindo em transporte, energia e telecomunicações, criando uma base sólida para o crescimento contínuo. Esses fatores combinados permitiram que o Japão não apenas se recuperasse dos efeitos devastadores da guerra, mas também se transformasse em uma das economias mais avançadas e poderosas do mundo.
Madeeeeira: A economia japonesa está morrendo?
Nos anos 1980, o Japão viveu um boom econômico gigantesco, com o mercado imobiliário e a bolsa de valores disparando. Todo mundo estava pegando empréstimos e investindo, acreditando que os preços dos imóveis e das ações só iam subir (isso te lembra algum país chamado Estados Unidos da América?). Era um período de otimismo exagerado, e os bancos estavam emprestando dinheiro a rodo.
Os anos 80 foram realmente prósperos para o Japão
Mas, no final dos anos 80 e início dos anos 90, essa bolha estourou. O Banco do Japão, preocupado com a inflação e o mercado aquecido demais, começou a subir as taxas de juros. Isso fez com que os preços dos imóveis e das ações despencassem, deixando muita gente no prejuízo. Empresas e investidores que tinham tomado grandes empréstimos ficaram endividados, e os bancos começaram a acumular um monte de empréstimos inadimplentes.
Com a economia em queda livre, o Japão entrou numa crise que ficou conhecida como a "Década Perdida". Para tentar reverter a situação, o Banco do Japão cortou as taxas de juros quase a zero, esperando que isso estimulasse o consumo e o investimento. Mas, em vez disso, as pessoas e empresas ficaram com medo de gastar ou investir por causa da incerteza econômica e da deflação, onde os preços continuam caindo.
Nesse cenário de deflação, onde todo mundo esperava que os preços continuassem a cair, ninguém queria gastar ou investir. Isso fez com que a economia continuasse parada, mesmo com as taxas de juros tão baixas. O Japão acabou entrando numa "armadilha da liquidez", onde as políticas monetárias tradicionais, como cortar juros, não conseguiam mais estimular a economia.
Game Boy: as crianças faziam birra por causa disso aqui. Você que os celulares foram um dos responsáveis pela queda nas vendas desse gadget aqui?
Para tentar sair dessa armadilha, o Japão começou a usar medidas não convencionais, como o "quantitative easing", que é quando o banco central compra ativos para injetar dinheiro na economia. Mas, mesmo com essas medidas, o Japão continuou lutando contra o baixo crescimento e a deflação por muitos anos, mostrando como é difícil sair dessa situação.
A Armadilha Não é de Todo Ruim: Como O Japão Comprou o Mundo
A armadilha da liquidez no Japão, que manteve as taxas de juros praticamente zeradas por muito tempo, fez com que os investimentos dentro do país ficassem pouco atraentes. Com juros tão baixos, investir em coisas como poupança e títulos do governo japonês não dava quase nenhum retorno. Por isso, os investidores japoneses, incluindo grandes bancos e até pequenos poupadores, começaram a olhar para fora do país em busca de melhores oportunidades.
Com as poucas opções rentáveis dentro do Japão, esses investidores passaram a comprar títulos de outros países, que ofereciam juros mais altos. Essa era uma maneira de conseguir um rendimento melhor do que o disponível no mercado interno. Além disso, o Japão acumulou muitas reservas em moedas estrangeiras, principalmente dólares americanos, graças ao seu forte comércio exterior. Essas reservas foram frequentemente usadas para comprar títulos de outros governos, como os dos Estados Unidos, consolidando o Japão como um dos maiores credores do mundo.
Outro ponto importante é que o Japão vinha enfrentando deflação, com os preços caindo ao longo do tempo, e a moeda japonesa, o iene, era relativamente estável. Isso incentivou ainda mais os investidores a procurarem rendimentos fora do país. Investir em títulos soberanos de outros países permitia não só ganhar mais dinheiro, mas também proteger o capital contra a deflação e possíveis desvalorizações do iene.
Por fim, as políticas econômicas do Japão, que mantiveram os juros baixos e limitaram o aumento da dívida pública interna, também empurraram os investidores para fora. Com poucas opções de investimento lucrativo em casa, eles acabaram diversificando seus recursos e comprando títulos estrangeiros. Assim, o Japão se tornou o maior credor internacional de títulos soberanos, como uma forma de garantir melhores rendimentos e proteger seus investimentos.
Caçados de unicórnios: o SoftBank é o sugar daddy do mercado?
Quer um exemplo, na prática, disso? O Softbank: o conglomerado japonês é um dos maiores investidores do mundo e o braço de venture capital saiu pelo mundo fazendo compras e entre perdas e ganhos naturais da indústria de VC hoje detém investimentos em grandes empresas tech como a Nvidia, Uber e Byte Dance (dona do TikTok).
Observadores de Placas Tectônicas
“E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você?” já questionava o saudoso Carlos Drummond de Andrade.
Agora que você já entendeu a importância dos japoneses para o mercado financeiro e depois de tudo que explicamos aqui, você se pergunta: e agora, José? Como fica essa história toda de Japão subir juros e o dinheiro ficar mais caro por lá?
Não fica, né. Isso são cenas para os próximos episódios. Por enquanto, todos continuamos dançando enquanto a música toca. Mas, claro, dançando com os olhos na porta de saída.