Este artigo não é para você. Vá para sua próxima leitura ou retorne para os reels do Instagram.
Para uma degustação maior do texto, leia acompanhada do áudio no youtube “playlist to feel like dante descending with virgil through the 9 circles of hell”.
Como disse, esse artigo não é para você. Você não tem tempo para isso.
Iniciando a sua jornada…
Pax Romana.
A expressão Pax Romana deriva do latim e carrega em si a essência de um período marcante da história: "a paz romana". Etimologicamente, a palavra "pax" não significa apenas ausência de guerra, mas também remete à ideia de ordem e estabilidade garantidas pela autoridade suprema de Roma. Esse conceito está profundamente enraizado na narrativa de um império que, entre os séculos I a.C. e II d.C., se projetou como o guardião da ordem mundial.
A Pax Romana não foi apenas um ideal político, mas um fenômeno administrativo e econômico que transformou vastos territórios heterogêneos em um sistema unificado. No cerne dessa integração estava a administração fiscal, na qual as tarifas comerciais desempenharam um papel central. As portoria — taxas alfandegárias cobradas sobre mercadorias que cruzavam fronteiras provinciais ou ingressavam no território imperial — foram um mecanismo crucial para sustentar tanto a economia quanto a estrutura política de Roma.
Durante esse período de relativa paz, as rotas comerciais tornaram-se a espinha dorsal do império. Um dos exemplos mais emblemáticos dessa infraestrutura viária era a Via Appia, considerada a principal rodovia romana. Construída inicialmente para fins militares, tornou-se vital para o comércio e a administração, conectando Roma às províncias do sul da Itália e servindo como modelo para a vasta rede de estradas que sustentava o império
Estradas pavimentadas, portos bem estruturados e guarnições militares estrategicamente posicionadas garantiam a segurança de mercadores e caravanas. Essas rotas não apenas conectavam o Mediterrâneo às províncias mais distantes, mas também facilitavam o trânsito de produtos exóticos, como especiarias do Oriente, mármore da Grécia e trigo do Egito. Em contrapartida, Roma impunha tarifas que, embora onerosas, eram vistas como o preço de transitar em um mundo pacificado e ordenado.
As tarifas não se limitavam à arrecadação de recursos; elas simbolizavam a autoridade de Roma sobre as províncias e sobre o comércio internacional. Esse sistema fiscal, eficiente e abrangente, permitiu que o império financiasse suas legiões, a construção de infraestrutura monumental — como aquedutos e estradas — e a manutenção de um aparato administrativo robusto. Mais do que isso, as tarifas ajudaram a integrar economicamente territórios diversos, criando uma malha comercial que funcionava como uma força coesiva para o império.
A Pax Romana demonstra como a administração fiscal eficiente pode ser uma extensão da política e da diplomacia. As portoria, longe de serem meras ferramentas econômicas, funcionavam como símbolos tangíveis de poder e ordem. Esse modelo de integração, ainda que ancorado no controle e na tributação, oferece uma lição perene sobre a relação entre estabilidade política e prosperidade econômica.
Dante, Roma Antiga e o conceito de controle
A Pax Romana, com sua administração econômica e estabilidade fiscal, foi um testemunho de como o controle bem estruturado pode sustentar a ordem em um império vasto e diverso. O equilíbrio alcançado por Roma era tão meticuloso quanto o conceito de justiça que permeia a Divina Comédia de Dante Alighieri.
"O Inferno de Dante" de Sandro Botticelli (1485-1495).
Na obra de Botticelli, vemos o mapeamento detalhado dos nove círculos do Inferno, que Dante atravessa guiado por Virgílio. Cada círculo representa um pecado específico, com castigos que refletem o conceito de contrapasso, a ideia de que a punição é proporcional e adequada ao pecado cometido. O traço delicado de Botticelli revela cenas de sofrimento profundo, mas também de controle meticuloso. No círculo dos avarentos, por exemplo, os condenados rolam pedras enormes em um ciclo sem fim, um reflexo simbólico do peso que a ganância exerceu sobre suas vidas. Esse mesmo peso – o da busca incessante por riquezas – é o que moveu a imposição das portoria na Roma Antiga.
Observe como Botticelli organiza o caos de forma geométrica e precisa. As espirais concêntricas que descem até o centro do Inferno são um contraponto à desordem dos pecados ali representados. Na margem superior esquerda da pintura, vemos Dante e Virgílio descendo pelo segundo círculo, onde os luxuriosos são arrastados por ventos incessantes. Mais abaixo, no quinto círculo, o rio Estige serpenteia, onde os iracundos estão mergulhados em um lodo sombrio. A composição de Botticelli captura a essência de um sistema onde cada ação tem sua consequência inevitável – assim como as tarifas romanas tinham impactos em diferentes camadas da sociedade.
Dante escreve: "Per me si va nella città dolente, per me si va nell'etterno dolore, per me si va tra la perduta gente" (Canto III, Inferno). Traduzido, significa: "Por mim se vai à cidade do sofrimento, por mim se vai à dor eterna, por mim se vai ao meio da gente perdida." Essa passagem, que descreve a inscrição no portal do Inferno, também pode ser lida como uma metáfora para as consequências de sistemas de controle como as tarifas. Para os beneficiados, as tarifas eram instrumentos de prosperidade e paz; para os oprimidos, uma forma de dor e subjugação.
Sandro Botticelli foi um mestre em usar a arte para narrar histórias complexas. Em O Inferno de Dante, a paleta de cores é restrita, mas eficaz: tons terrosos e vermelhos simbolizam a dor e o sofrimento, enquanto o azul frio, usado para destacar o rio Cocito no círculo final, evoca a sensação de desespero congelado. A forma como Botticelli estrutura os círculos do Inferno também dialoga com a organização fiscal romana. Assim como o Inferno era um sistema hierárquico de punições, as tarifas romanas eram um sistema hierárquico de arrecadação, com impactos diferentes dependendo da posição social e geográfica. A geometria precisa da pintura, com linhas que guiam o olhar do espectador em direção ao centro, se assemelha à lógica implacável das políticas de Roma: tudo converge para o núcleo do poder imperial.
"Impostos são os nervos do Estado." — Cícero (De Officiis, 44 a.C.)
O comércio e as Tarifas na Roma Antiga
Nota: "Cena de um Mercado Romano" de Ettore Forti (século XIX).
Ettore Forti captura em “Cena de um Mercado Romano” a essência da vida cotidiana na Roma Antiga, representando não apenas a riqueza cultural de um império vasto, mas também o impacto das tarifas no comércio que sustentavam essa sociedade. A obra, com seu estilo acadêmico detalhista, transporta o espectador para o coração de um mercado romano, onde produtos exóticos e símbolos de poder econômico coexistem em um ambiente vibrante e ordenado.
Na pintura, Forti explora a vitalidade do mercado como o centro nervoso do comércio romano. As túnicas impecáveis dos comerciantes indicam prosperidade, enquanto as pilhas de frutas exóticas e ânforas repletas de óleo e vinho sugerem a diversidade de produtos que chegavam à cidade, vindos de províncias distantes como a Gália, o Egito e a Síria. As inscrições em pergaminhos e tábuas de cera, que podemos imaginar como registros fiscais ou contratos de comércio, são uma alusão sutil ao controle econômico que permitia a fluidez do sistema.
Forti utiliza a luz de forma estratégica para destacar a abundância de mercadorias e o dinamismo das trocas comerciais. No fundo, o contraste entre a arquitetura monumental romana e o ambiente agitado do mercado reforça a relação simbiótica entre o Estado e o comércio: as tarifas coletadas nas rotas e portos sustentavam não apenas o mercado local, mas também as grandiosas construções que projetavam o poder de Roma.
Esses mercados romanos não eram apenas locais de troca; eram o reflexo de um sistema econômico altamente organizado. As tarifas alfandegárias cobradas nas fronteiras das províncias e nos portos mediterrâneos asseguravam que Roma se beneficiasse de cada transação realizada dentro de seu vasto território.
A diversidade de produtos que vemos na obra de Forti só era possível graças à relativa segurança oferecida pela Pax Romana. As legiões protegiam as rotas comerciais contra saqueadores e piratas, e a rede de estradas romanas — financiada em parte pelas receitas das tarifas — facilitava o fluxo de mercadorias entre os cantos mais distantes do império.
A composição de Forti, com a interação entre comerciantes e compradores em primeiro plano, sugere uma ordem implícita no caos aparente do mercado. Essa organização reflete o papel das tarifas na manutenção dessa estrutura: ao taxar mercadorias de forma sistemática, Roma não apenas arrecadava recursos, mas também estabelecia padrões de controle e pertencimento. Produtos estrangeiros, como especiarias orientais, passavam por camadas de tributação antes de alcançar as elites romanas.
Da mesma forma, as tarifas eram instrumentos de diferenciação social. Enquanto os produtos mais caros circulavam entre os nobres, os mercados também ofereciam bens acessíveis às classes mais baixas, que contribuíam indiretamente para o sistema tributário ao consumir mercadorias sujeitas a impostos menores. Esse equilíbrio entre acessibilidade e exclusividade não só sustentava a coesão social, como também tornava a dominação romana mais palatável para os povos conquistados, facilitando sua integração ao modelo imperial e explicando, em parte, a ampla aceitação da romanização.
Assim como o mercado retratado por Forti funciona como um microcosmo da vida romana, as tarifas representavam um equilíbrio delicado entre prosperidade e controle. A obra nos lembra que, no coração do comércio romano, estava o poder do Estado, visível não apenas nas transações econômicas, mas também na infraestrutura, na segurança e no símbolo de ordem que o mercado representava.
"A moeda que mais circula no Inferno é a fraude." — Dante Alighieri (Inferno, Canto XI, 1308-1320)
Tarifas e o Renascimento
Nota: "A Peste em Ashdod" de Nicolas Poussin (1630).
Enquanto os mercados romanos retratados por Ettore Forti simbolizam o início de uma economia integrada, com tarifas servindo como pilares de controle e prosperidade, o Renascimento traz uma mudança dessa dinâmica. Séculos depois do colapso do Império Romano, as cidades italianas recuperaram a centralidade comercial na Europa, e as tarifas, agora moldadas pelas rivalidades regionais, assumiram um papel estratégico no desenvolvimento econômico e cultural.
O mercado romano, com sua ordem aparente e organização fiscal, gradualmente deu lugar a um mundo fragmentado, onde cada Cidade-Estado disputava a supremacia econômica. Florença, Veneza e Gênova tornaram-se centros financeiros e comerciais de destaque, mas essa prosperidade não veio sem custos. As tarifas, que outrora sustentavam a paz imperial, agora alimentavam tensões econômicas e políticas entre rivais regionais.
Nesse contexto, Nicolas Poussin, em sua obra A Peste em Ashdod, captura as consequências dessas crises econômicas, especialmente durante surtos de peste, que desestabilizavam o frágil equilíbrio entre riqueza e miséria.
Na obra de Poussin, o evento bíblico da praga em Ashdod é usado como uma metáfora poderosa para o desequilíbrio social e econômico. No primeiro plano, corpos caídos e personagens aflitos compõem uma cena de caos, enquanto no fundo a arquitetura grandiosa da cidade lembra a opulência construída às custas dessa desigualdade. O contraste entre o luxo dos edifícios e a angústia dos personagens é um reflexo direto das tensões econômicas do Renascimento.
As roupas ricas e ornamentadas de algumas figuras destacam as elites que prosperavam mesmo em tempos de crise, enquanto os semblantes dos demais personagens sugerem desespero. Poussin utiliza o jogo de luz e sombra para amplificar esse contraste, com as áreas mais iluminadas focando na monumentalidade da cidade e as mais sombrias nos corpos amontoados, sugerindo que a prosperidade de alguns dependia do sacrifício de muitos.
Essa dualidade é fundamental para entender as economias renascentistas. Durante os surtos de peste, as cidades italianas impunham tarifas pesadas às mercadorias estrangeiras, tanto para proteger suas populações de potenciais vetores de contaminação quanto para compensar as perdas econômicas geradas pelo declínio do comércio. Porém, essas políticas também exacerbaram desigualdades e tensões entre as Cidades-Estado, cada uma tentando garantir sua sobrevivência às custas das demais.
No Renascimento, as tarifas transcenderam sua função econômica para se tornarem ferramentas de estratégia política e sobrevivência social. Cidades como Veneza, por exemplo, estabeleceram impostos sobre produtos que cruzavam o Mediterrâneo, enquanto Florença utilizava tarifas para controlar a entrada de mercadorias estrangeiras e proteger suas indústrias têxteis, como a produção de lã e seda.
Essas práticas, no entanto, não estavam isentas de desafios. Durante crises como a peste, a escassez de bens essenciais tornava as tarifas um fardo ainda maior para as populações mais pobres. Ao mesmo tempo, as elites econômicas se beneficiavam da proteção oferecida pelo sistema, reforçando desigualdades que geravam instabilidade. O cenário retratado por Poussin, com sua ênfase no contraste entre luxo e sofrimento, encapsula essas dinâmicas.
À medida que avançamos do mercado romano para os mercados renascentistas, vemos como as tarifas evoluíram de um sistema de unificação e controle para uma ferramenta de competição e exclusão. O Renascimento, período de grande riqueza cultural e econômica, foi também uma era marcada por profundas divisões sociais e tensões comerciais. As tarifas, ao mesmo tempo que financiavam a glória das cidades italianas, expunham os limites da prosperidade compartilhada.
A partir daqui, seguimos nossa jornada histórica, observando como as tarifas emergem como protagonistas em momentos de mudança. Seja no Mediterrâneo renascentista ou em episódios futuros, como a Revolução Americana, as tarifas continuam a moldar sociedades, desafiando o equilíbrio entre prosperidade e desigualdade.
Comércio Colonial e o Caminho para a Revolução
Nota: “A Chegada de Cristóvão Colombo nas Américas” de John Vanderlyn (1847).
A pintura de John Vanderlyn, com sua composição grandiosa e teatral, marca um dos momentos mais emblemáticos da história mundial: o encontro entre Europa e Américas. A cena, com Cristóvão Colombo desembarcando em terras desconhecidas, simboliza tanto o início da exploração do "Novo Mundo" quanto o surgimento de uma economia global profundamente marcada pelo controle comercial e pelas tarifas. O contraste entre os trajes opulentos de Colombo e seus homens, e a vastidão tropical do fundo, reflete o domínio europeu sobre essas terras, um domínio sustentado por políticas econômicas rigorosamente planejadas.
Embora Vanderlyn capture o instante inaugural desse novo paradigma, ele também nos convida a refletir sobre suas consequências. O comércio colonial, estabelecido sob o paradigma do mercantilismo, rapidamente se tornou um sistema em que as tarifas comerciais desempenhavam um papel central. Os bens extraídos das colônias – como açúcar, tabaco, metais preciosos e especiarias – eram cuidadosamente regulados por tarifas impostas pelas potências europeias, garantindo que o fluxo de riquezas favorecesse as metrópoles.
No século XVII, as potências coloniais europeias implementaram políticas mercantilistas que buscavam acumular riqueza por meio do controle estrito do comércio. A Inglaterra, em particular, promulgou os Atos de Navegação, que restringiam as colônias americanas a comerciar apenas com navios britânicos e com a própria metrópole. Essas tarifas visavam assegurar que Londres permanecesse como o centro econômico do império, recebendo a maior parte dos lucros gerados nas Américas.
Essas políticas fiscais, no entanto, estavam longe de ser neutras. Embora garantissem a prosperidade das elites britânicas e financiassem a expansão militar e colonial, também criaram tensões nas colônias. Os comerciantes americanos eram frequentemente obrigados a pagar preços inflacionados por produtos britânicos, enquanto enfrentavam tarifas exorbitantes sobre suas exportações. A frase de Dante em Inferno – "Non c'è dolore più grande che ricordarsi del tempo felice nella miseria" ("Não há dor maior do que lembrar-se de tempos felizes na miséria") – ressoa aqui, simbolizando o descontentamento dos colonos que, inicialmente prósperos, agora se sentiam sufocados pelas restrições econômicas impostas pela metrópole.
Vanderlyn, em A Chegada de Cristóvão Colombo nas Américas, não apenas ilustra a conquista europeia, mas também sugere os impactos econômicos que essa conquista geraria. A paisagem tropical exuberante contrasta com a formalidade dos exploradores, enfatizando o desequilíbrio de poder entre colonizadores e colonizados. Esse contraste reflete o próprio sistema mercantilista: enquanto as metrópoles acumulavam riquezas, as colônias arcavam com os custos econômicos e sociais desse sistema.
O comércio colonial tornou-se o ponto de partida para disputas econômicas que, séculos mais tarde, culminariam em revoltas como a Revolução Americana. As tarifas impostas pelas metrópoles, inicialmente vistas como um meio de organizar o comércio, gradualmente se transformaram em um símbolo de opressão para os colonos.
"O grande objetivo do comércio não é apenas ganhar, mas permitir que todos prosperem." — Leonardo da Vinci (Cadernos de Notas, final do século XV)
As tarifas na Revolução Americana
Nota: "O Boston Tea Party" de Nathaniel Currier (1846).
Nathaniel Currier, em sua obra O Boston Tea Party, imortaliza um dos momentos mais emblemáticos da história econômica e política: o protesto dos colonos americanos contra as tarifas britânicas. A pintura, com seu contraste entre a ação enérgica dos manifestantes e a serenidade do céu ao fundo, encapsula a tensão latente entre opressão econômica e revolução social. Currier não apenas registra um evento histórico, mas também transmite, por meio de sua composição, a ideia de que decisões econômicas aparentemente simples podem desencadear grandes transformações políticas.
A cena retrata colonos americanos, alguns disfarçados de nativos, jogando caixas de chá nos portos de Boston em dezembro de 1773. O movimento caótico dos manifestantes no primeiro plano contrasta com a calma do céu e da água ao fundo, criando uma narrativa visual que reflete a ordem subjacente ao caos aparente. As caixas de chá flutuando na água são mais do que objetos descartados; elas simbolizam a ruptura entre colônia e metrópole, um grito de independência em resposta à opressão econômica.
Currier utiliza cores vivas para destacar a dinâmica da ação, enquanto as figuras humanas são deliberadamente simplificadas, reforçando a ideia de que o evento transcende os indivíduos presentes e representa um marco coletivo na história A Lei do Chá de 1773, que concedeu à Companhia Britânica das Índias Orientais o monopólio da venda de chá nas colônias americanas, foi a faísca que inflamou o descontentamento colonial. Embora a tarifa sobre o chá em si fosse modesta, seu impacto político foi enorme. Para os britânicos, o chá representava riqueza, sofisticação e poder; para os colonos, ele rapidamente se tornou um símbolo de opressão econômica e submissão política.
O Boston Tea Party foi uma reação direta ao sentimento de exploração. Os colonos não se revoltavam apenas contra o custo do chá, mas contra a ideia de que poderiam ser tributados sem representação no Parlamento britânico – um princípio resumido na frase "no taxation without representation" (sem tributação sem representação). As tarifas britânicas, projetadas para reforçar o controle imperial, acabaram gerando o oposto: um movimento organizado por independência.
O chá, tão central para a identidade britânica e seu império comercial, tornou-se o catalisador de uma crise política que transformaria o mundo. O contraste presente na obra de Currier – entre o caos do protesto e a serenidade do porto – é uma metáfora poderosa para o papel das tarifas: instrumentos que, embora pareçam neutros ou administrativos, carregam profundas implicações políticas e culturais.
O Boston Tea Party não foi apenas um evento isolado, mas um marco que mostrou como a política fiscal e o comércio estão intrinsecamente ligados aos anseios de liberdade e igualdade. Essa transformação da função das tarifas – de um mecanismo administrativo para um símbolo de resistência – ecoa até hoje, mostrando que a economia é, acima de tudo, uma expressão das sociedades que a moldam.
Do Boston Tea Party ao Protecionismo do Século XIX
Se no final do século XVIII as tarifas eram símbolo de opressão colonial, no século XIX elas passaram a ser um instrumento essencial da construção econômica dos próprios Estados Unidos. O jovem país, que antes via os impostos como uma ameaça à sua autonomia, passou a usá-los para proteger sua indústria nascente e definir os rumos de seu crescimento.
Essa mudança de perspectiva não ocorreu isoladamente: ela estava inserida em uma visão maior de progresso e expansão, representada de maneira simbólica na pintura American Progress, de John Gast, que trataremos abaixo. Se no século XVIII as tarifas eram motivo de revolta, no século XIX elas passaram a ser justificadas como uma necessidade do crescimento nacional. Mas, assim como no episódio do Boston Tea Party, as tarifas nunca vêm sem consequências – e, à medida que os Estados Unidos consolidavam seu espaço econômico, os desafios do protecionismo começavam a surgir.
No século XIX, a visão protecionista se cristalizou como uma estratégia ativa para fortalecer a indústria americana e proteger o mercado interno da concorrência europeia. Era uma política voltada para dentro, um mecanismo que moldava a estrutura produtiva do país e sustentava sua expansão territorial.
É nesse contexto que surge American Progress, uma obra que encapsula a crença no destino inevitável da nação americana. A figura feminina que avança pelo continente simboliza a expansão territorial e econômica, impulsionada pela construção de ferrovias, pelo avanço da fronteira agrícola e pelo desenvolvimento industrial. Mas, como toda política expansionista, esse crescimento teve custos: à medida que novas indústrias se consolidavam, outras formas de produção eram deslocadas; enquanto alguns prosperavam, outros eram empurrados para as margens do sistema econômico.
Esse mesmo dilema persiste no século XXI. Se no passado o governo usava tarifas para proteger suas indústrias e expandir sua influência econômica, mais recentemente elas voltaram ao centro do debate como uma resposta às pressões da globalização. Assim como no século XIX, quando os Estados Unidos buscavam consolidar seu espaço econômico em meio a um mundo em transformação, as tarifas modernas representam uma tentativa de retomar o controle sobre o próprio destino econômico.
A política protecionista ressurge, então, não como uma novidade, mas como um retorno cíclico na história econômica americana—um movimento que, assim como no passado, levanta a mesma pergunta: até que ponto as tarifas fortalecem um país, e quando começam a isolá-lo? É nesse ponto que a política comercial recente se conecta a uma longa tradição de disputas sobre protecionismo e comércio livre.
"Quando o comércio cessa, outras artes seguem-no." — David Hume (Essays, Moral, Political, and Literary, 1742)
Tarifas Contemporâneas e a Era Atual
Nota: “American Progress” – John Gast (1872).
No centro da pintura de John Gast, uma figura feminina avança pelo território americano, em direção oeste, trazendo consigo luz e progresso. Atrás dela, ferrovias e cidades florescem; à sua frente, terras ainda escuras e povos deslocados representam o desconhecido. Essa metáfora visual do Destino Manifesto reflete não apenas a expansão territorial do século XIX, mas também uma visão mais ampla de progresso econômico moldado por políticas protecionistas.
O protecionismo, no século XIX, foi um dos principais motores do desenvolvimento industrial americano. Assim como a expansão territorial trazia a promessa de novas oportunidades para alguns e incertezas para outros, as tarifas passaram a ser utilizadas como uma ferramenta para proteger certos setores enquanto impunham custos a outros. O comércio, como a terra, tornou-se um campo de disputa onde o Estado intervinha para moldar seu próprio destino.
Esse dilema ressurgiu no século XXI, quando as tarifas voltaram a ser um instrumento central da política econômica dos Estados Unidos. As tarifas impostas sobre produtos chineses foram justificadas como uma defesa contra a “injustiça comercial”, prometendo trazer fábricas de volta ao país. No entanto, assim como na expansão americana do século XIX, os efeitos foram complexos. Algumas indústrias, como o aço e o alumínio, ganharam proteção, enquanto outras, como a agricultura, sofreram com as retaliações comerciais.
A figura feminina em American Progress simboliza a ideia de avanço inevitável, mas à custa do que estava antes. O mesmo ocorre com as tarifas modernas: ao mesmo tempo que foram vistas como um impulso à economia americana, elas criaram novos desafios, incluindo o aumento dos preços para consumidores e a desestabilização das cadeias de suprimentos globais.
Os colonos avançando no quadro refletem a ideia de que o protecionismo pode beneficiar grupos específicos, mas sempre à custa de outros. No século XIX, a expansão territorial americana trouxe riqueza para alguns e despossessão para outros. No século XXI, as tarifas foram uma estratégia para revitalizar setores industriais, mas sacrificaram exportadores e consumidores que enfrentaram custos mais altos.
A política tarifária recente foi uma tentativa de remodelar a economia global com base no nacionalismo econômico. Com tarifas sobre mais de US$ 300 bilhões em produtos chineses, seu governo justificava as medidas como uma proteção contra práticas desleais, mas, na prática, as tarifas também serviram como uma ferramenta geopolítica.
Assim como na época do Destino Manifesto, a retórica sobre tarifas evocava a ideia de que os EUA estavam retomando o controle de seu próprio destino. Mas, como mostra a pintura de Gast, o avanço sempre tem consequências: enquanto algumas partes da economia foram protegidas, outras foram empurradas para a incerteza.
A transição da lógica expansionista do século XIX para o protecionismo econômico do século XXI revela um padrão recorrente: o desejo de controle. Seja sobre o território, seja sobre as relações comerciais, a ideia de que uma nação pode moldar seu próprio destino por meio de barreiras e restrições é uma constante na história dos Estados Unidos. Mas, assim como Roma viu suas tarifas se tornarem tanto um pilar de sua prosperidade quanto um fardo que enfraqueceu sua estrutura econômica, as políticas protecionistas recentes levantam a mesma questão: em que momento as tarifas deixam de fortalecer um país e começam a prejudicá-lo?
Essa é uma interrogação que permanece aberta, pois o legado tarifário contemporâneo não foi um evento isolado, mas sim um capítulo em uma longa história de disputas entre livre comércio e protecionismo. O que podemos aprender com essas experiências passadas? E qual será o próximo passo na evolução das tarifas no cenário global? Essa discussão nos leva diretamente ao impacto dessas políticas no comércio internacional e às reações das potências econômicas globais.
"Nenhuma nação jamais se arruinou pelo comércio." — Benjamin Franklin (Carta a Benjamin Vaughan, 1787)
O Eterno Retorno das Tarifas
A história das tarifas, como vimos, não é linear. Elas aparecem e reaparecem em diferentes períodos, sempre respondendo a demandas políticas, sociais e econômicas do momento. Da Pax Romana ao Renascimento, da Revolução Americana à política econômica contemporânea, as tarifas foram ora instrumentos de estabilidade, ora catalisadores de crises. Foram, em diferentes épocas, símbolos de poder, ferramentas de integração ou barreiras ao progresso.
Mas se esses ciclos parecem inevitáveis, será que há um mecanismo subjacente que os governa? Será que podemos prever os efeitos de uma política tarifária antes que suas consequências se materializem?
A história nos mostra os eventos e suas consequências, mas é na teoria econômica que encontramos as ferramentas para entender a lógica que os sustenta. Os modelos matemáticos e a teoria dos jogos nos ajudam a decifrar a mecânica das interações comerciais e a dinâmica das disputas tarifárias entre nações. Se no passado Roma, Florença e a América colonial moldaram suas políticas comerciais com base na experiência empírica e no instinto político, hoje contamos com uma ciência que nos permite quantificar essas relações e antecipar cenários futuros.
Para compreender a essência das tarifas em um mundo interconectado, precisamos ir além da observação histórica e explorar a lógica formal que rege as interações econômicas. Como países decidem impor tarifas? Como se formam os equilíbrios entre cooperação e protecionismo? A resposta está na teoria dos jogos e nos modelos de decisão estratégica..
"Se você souber jogar bem, sempre terá um movimento a fazer." — John von Neumann (Theory of Games and Economic Behavior, 1944)
Da dose de colírio alucinógeno para a teoria: tarifas na ótica econômica
Se você chegou até aqui, claramente é diferenciado, ou maluco.
Passado essa elucubração de ilustrações e reflexões, podemos abordar um pouco mais o tema de tarifas, dessa vez de forma mais teórica.
As tarifas, ao longo da história, foram justificadas por diferentes argumentos econômicos, variando de mecanismos de proteção nacional a instrumentos estratégicos de arrecadação. Do ponto de vista teórico, elas representam uma intervenção no livre funcionamento do comércio internacional e, portanto, ocupam um lugar central na formulação das políticas comerciais. Para compreender suas implicações, é necessário analisá-las tanto sob a ótica microeconômica quanto macroeconômica.
Tarifas e a Micro: Distorções, Bem-estar e Eficiência
No contexto microeconômico, as tarifas são consideradas impostos indiretos sobre bens importados, que afetam tanto consumidores quanto produtores. O modelo tradicional de oferta e demanda ensina que a introdução de uma tarifa eleva o preço dos bens importados, reduzindo a quantidade consumida e deslocando parte da demanda para produtores domésticos. Esse efeito gera uma redistribuição de renda entre agentes econômicos e pode levar a distorções de bem-estar.
A abordagem de equilíbrio parcial, como ilustrada pelo modelo de deadweight loss (perda de peso morto), sugere que tarifas geram dois efeitos principais:
Transferência de renda: O governo arrecada receita através da tarifa, enquanto consumidores perdem poder de compra devido ao aumento do preço dos bens importados.
Ineficiência alocativa: Ao tornar os bens importados artificialmente mais caros, a tarifa incentiva a produção doméstica em setores que não necessariamente são os mais eficientes. Isso desvia recursos de setores mais produtivos para setores protegidos, reduzindo o bem-estar agregado da economia.
A teoria do comércio internacional, conforme formalizada por autores como David Ricardo e Eli Heckscher-Ohlin, sugere que, sob condições de livre comércio, os países deveriam se especializar na produção de bens nos quais possuem vantagem comparativa. As tarifas, ao interferirem nesse processo, distorcem a alocação eficiente de recursos e podem levar a uma alocação subótima da produção global.
A Ótica Macro: Tarifas, Crescimento e Política Comercial
Sob uma perspectiva macroeconômica, o impacto das tarifas se estende além das distorções microeconômicas e passa a influenciar agregados como inflação, crescimento econômico e balança comercial. A relação entre tarifas e crescimento é objeto de amplo debate na literatura econômica. Tradicionalmente, modelos neoclássicos sugerem que tarifas reduzem a eficiência e, consequentemente, a taxa de crescimento de longo prazo. No entanto, em certas condições, elas podem estimular setores estratégicos e permitir o desenvolvimento de indústrias emergentes.
O Argumento da Indústria Nascente: Desenvolvido por Friedrich List e posteriormente refinado por economistas do desenvolvimento, este argumento sugere que tarifas podem ser justificadas para proteger setores estratégicos até que atinjam um nível de competitividade internacional. A história econômica mostra exemplos desse uso, como a política tarifária adotada pelos Estados Unidos no século XIX para estimular sua industrialização.
Impacto sobre a Inflação e o Consumo: As tarifas elevam os preços dos bens importados, o que pode pressionar a inflação doméstica, especialmente em economias dependentes de insumos estrangeiros. Em contrapartida, setores protegidos podem expandir sua produção e gerar empregos, resultando em ganhos de curto prazo para algumas indústrias.
Balança Comercial e Retaliações: Um dos objetivos das tarifas é reduzir o déficit comercial ao tornar as importações mais caras e estimular a demanda por bens domésticos. No entanto, essa estratégia frequentemente desencadeia retaliações comerciais, levando a guerras tarifárias que podem prejudicar o comércio global. A teoria dos jogos aplicada à política comercial sugere que a introdução de tarifas pode levar a equilíbrios subótimos, onde todos os países acabam impondo barreiras e reduzindo o bem-estar global.
Assim, a análise econômica das tarifas revela um dilema central: enquanto elas podem ser usadas como ferramenta estratégica para proteger setores e corrigir desequilíbrios comerciais, sua imposição gera distorções e pode levar a ineficiências econômicas. A próxima seção explorará como essas considerações teóricas se traduzem na prática, analisando casos históricos e o impacto real das políticas tarifárias no desenvolvimento econômico global.
Para formalizar a análise das tarifas na economia, podemos utilizar um modelo de equilíbrio parcial baseado na teoria microeconômica do comércio internacional. Vamos representar matematicamente o impacto de uma tarifa sobre um bem importado, analisando os efeitos no preço, na quantidade demandada e na perda de bem-estar.
Modelo Básico de Oferta e Demanda com Tarifa
Seja um mercado competitivo no qual o bem pode ser produzido domesticamente ou importado. Suponha que o preço internacional do bem seja P∗P^*P∗ (em uma economia aberta, este seria o preço de equilíbrio sem tarifas). A demanda e a oferta doméstica do bem são dadas pelas funções:
A quantidade importada é determinada como a diferença entre demanda e oferta doméstica:
Se o governo impõe uma tarifa específica t sobre cada unidade importada, o novo preço doméstico será:
Com isso, a quantidade demandada no mercado interno será menor, e a oferta doméstica aumentará devido ao preço mais alto:
A nova quantidade importada, considerando a tarifa, será:
onde , ou seja, as importações diminuem com a tarifa.
Perda de Bem-Estar Econômico
A introdução da tarifa gera três efeitos principais:
Receita Tarifária do Governo: O governo arrecada receita sobre cada unidade importada, totalizando:
Efeito Protecionista (Ganho do Produtor Doméstico): Os produtores domésticos ganham uma área adicional de excedente porque o preço mais alto incentiva maior produção. O ganho é aproximadamente dado por:
Perda de Excedente do Consumidor (Deadweight Loss): O custo econômico da tarifa vem da perda de bem-estar dos consumidores, que pagam um preço mais alto e reduzem sua demanda. A perda total de bem-estar (DW) pode ser dividida em:
Onde:representa a ineficiência alocativa, pois consumidores que antes compravam bens importados mais baratos agora devem pagar um preço mais alto ou substituí-los por bens domésticos mais caro, na ausência de um cenário de ganho de escala - que seria um equilíbrio que deveria ter se estabelecido anteriormente.
representa o custo da produção ineficiente, pois produtores domésticos estão agora alocando mais recursos para produzir bens que antes eram mais baratos no exterior.
Impacto nas Importações e na Balança Comercial
Seja e as elasticidades-preço da demanda e da oferta, respectivamente. A redução nas importações devido à tarifa pode ser estimada por:
Se o objetivo da tarifa for melhorar a balança comercial, seu impacto pode ser modelado por:
onde é a variação na balança comercial devido à redução das importações. Caso haja retaliação comercial, podemos introduzir um termo de exportações XXX, onde:
e representa a elasticidade da resposta dos parceiros comerciais.
O efeito líquido de uma tarifa depende da magnitude da arrecadação governamental, dos ganhos dos produtores e da perda de bem-estar dos consumidores. A condição para que a tarifa seja eficiente do ponto de vista nacional (ou seja, maximizando o bem-estar) é que a receita tarifária e os ganhos dos produtores superem a perda de bem-estar e eventuais retaliações comerciais.
Formalmente, a tarifa ótima sob a ótica do governo pode ser modelada como:
onde MRS representa a taxa marginal de substituição entre o consumo doméstico e a arrecadação do governo.
Esse modelo ilustra matematicamente o dilema clássico das tarifas: enquanto podem beneficiar setores específicos e gerar receita governamental, elas frequentemente criam ineficiências econômicas e impactos negativos no comércio global.
"A guerra comercial não nos custará nada, mas, na prática, ninguém vence uma guerra comercial." — Milton Friedman (entrevista, anos 1980)
Tarifas e Teoria dos Jogos: O Dilema dos Jogos Repetidos
A imposição de tarifas no comércio internacional não ocorre em um ambiente estático, mas sim dentro de um jogo repetido, onde países interagem continuamente ao longo do tempo. Enquanto um jogo de uma única rodada pode levar ao protecionismo mútuo — semelhante ao Dilema do Prisioneiro, onde ambos os jogadores optam pela pior solução coletiva para evitar serem explorados —, o contexto de interações contínuas permite o surgimento de estratégias cooperativas.
No longo prazo, as tarifas se tornam uma ferramenta estratégica, sujeita a ajustes e retaliações. O equilíbrio entre protecionismo e livre comércio depende não apenas das condições econômicas momentâneas, mas também das expectativas sobre o comportamento futuro dos parceiros comerciais.
Considere dois países, AAA e BBB, que interagem repetidamente no comércio internacional. Cada um pode escolher entre:
Tarifa baixa → Favorece o livre comércio e o crescimento conjunto.
Tarifa alta → Protege a economia doméstica, mas pode desencadear retaliações.
Se esse jogo fosse jogado uma única vez, o equilíbrio de Nash seria o protecionismo mútuo (), pois cada país tem incentivo a se proteger contra a exploração do outro. No entanto, como o jogo é repetido indefinidamente, países podem adotar estratégias mais sofisticadas que incentivam a cooperação, como a estratégia Tit-for-Tat (olho por olho), em que um país responde às tarifas do parceiro replicando sua decisão anterior:
Ou seja, se um país impõe tarifas hoje, o outro impõe no próximo período. Se um reduz tarifas, o outro pode retribuir. Essa estratégia cria um incentivo para que ambos mantenham tarifas baixas no longo prazo, evitando guerras comerciais destrutivas.
O pay-off de cada país ao longo do tempo é representado por uma função de desconto intertemporal, onde o valor presente de futuras interações influencia as decisões atuais. Seja o ganho econômico de um país ao adotar determinada política tarifária ao longo do tempo e um fator de desconto que representa a valorização do futuro:
Se for suficientemente alto (ou seja, se os países valorizarem o futuro e acreditam na possibilidade desse jogo ser jogado por muito tempo), a cooperação pode emergir, pois o custo de uma retaliação futura supera o benefício imediato de explorar o parceiro comercial.
O Papel da Retaliação e a Estabilidade da Cooperação
No contexto de jogos repetidos, a ameaça de retaliação é o mecanismo fundamental que sustenta a cooperação. Se um país rompe o equilíbrio cooperativo e impõe tarifas elevadas, o outro pode responder de forma simétrica, levando a um ciclo de medidas punitivas que reduzem o bem-estar de ambos.
Esse processo pode ser modelado pela estratégia de gatilho (grim trigger), onde um país coopera enquanto o parceiro também coopera, mas impõe tarifas elevadas indefinidamente caso o outro rompa o equilíbrio:
A severidade dessa punição faz com que países pensem duas vezes antes de desviar do equilíbrio cooperativo, pois as perdas futuras podem superar os ganhos imediatos da exploração comercial.
Matematicamente, um país seguirá cooperando se o benefício imediato de impor tarifas elevadas for menor que o custo descontado da retaliação futura. Ou seja, a cooperação é estável se:
Se essa desigualdade for satisfeita, os países optam por manter tarifas baixas, pois o custo da retaliação supera o ganho momentâneo do protecionismo unilateral.
Jogos Repetidos e a Política Comercial Contemporânea
Essa estrutura teórica explica por que as disputas comerciais raramente ocorrem de forma abrupta e unilateral. Em vez disso, observamos ciclos de escalada e distensão tarifária, conforme países testam os limites da cooperação. Um exemplo recente foi a guerra comercial entre EUA e China, onde cada rodada de tarifas foi seguida por negociações e eventuais ajustes, em um jogo de longo prazo onde ambas as partes buscavam maximizar seus interesses sem desencadear uma retaliação irreversível.
O modelo de jogos repetidos também justifica a existência de instituições como a OMC (WTO), que servem como árbitros externos para reduzir a incerteza e aumentar a previsibilidade nas relações comerciais. Se os países tiverem um mecanismo confiável para impor punições coordenadas, a cooperação se torna mais fácil de sustentar, pois a retaliação não precisa ser imediata nem unilateral.
Por fim, essa lógica nos leva a uma reflexão crucial: em um mundo onde a interdependência comercial é inevitável, qual é o verdadeiro poder das tarifas? Em que ponto elas deixam de ser um instrumento de proteção econômica e passam a ser um risco estratégico?
A resposta, como a teoria dos jogos sugere, depende não apenas da decisão de um único país, mas da expectativa coletiva sobre o futuro do comércio global.
Da Teoria à Evidência: Tarifas como Estratégia e suas Consequências Reais
A teoria dos jogos repetidos nos mostrou que tarifas não são apenas medidas econômicas isoladas, mas sim instrumentos estratégicos inseridos em uma dinâmica contínua de ação e reação entre países. A decisão de impor ou retirar tarifas não ocorre no vácuo: ela leva em conta a previsibilidade das respostas dos parceiros comerciais e os incentivos de longo prazo à cooperação ou ao protecionismo.
Se a estrutura teórica nos oferece um modelo para entender como tarifas podem levar a equilíbrios cooperativos ou a espirais de retaliação, a experiência recente nos fornece um estudo de caso concreto: a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China (2018-2020). O governo Trump rompeu com décadas de políticas comerciais baseadas no livre comércio e lançou uma estratégia protecionista com o objetivo declarado de fortalecer a economia americana. Mas até que ponto essa estratégia atingiu seus objetivos?
Os modelos teóricos de jogos repetidos preveem que políticas comerciais protecionistas podem gerar ciclos de retaliação, aumentando os custos para ambos os lados e tornando o retorno à cooperação mais difícil. Essa previsão foi amplamente confirmada pelos estudos empíricos que analisaram os impactos das tarifas impostas entre 2018 e 2020. Ao longo desse período, cada rodada de imposição de tarifas foi seguida por retaliações chinesas, levando a um aumento da incerteza e a distorções significativas no comércio global.
A teoria sugere que, se a cooperação for suficientemente valorizada pelos países, as tarifas devem eventualmente ser reduzidas para evitar prejuízos mútuos. No entanto, a guerra comercial entre EUA e China revelou um cenário mais complexo: a política tarifária foi não apenas uma ferramenta econômica, mas também um instrumento de disputa geopolítica e de sinalização política doméstica. Isso significa que, mesmo quando os custos econômicos se tornaram evidentes, os incentivos políticos internos dificultaram a reversão completa das tarifas.
O que dizem os dados? Estudos acadêmicos publicados nos principais periódicos econômicos analisaram os impactos dessa política sob diversos ângulos: sobre preços ao consumidor, comércio exterior, emprego, investimentos e crescimento econômico. Em todos esses aspectos, os achados reforçam a ideia de que, embora algumas indústrias tenham sido beneficiadas temporariamente, os custos econômicos globais superaram os ganhos localizados.
A transição da análise teórica para os dados empíricos nos permite testar as previsões dos modelos econômicos em um cenário real. Como veremos a seguir, os impactos da guerra comercial não foram homogêneos: enquanto alguns setores ganharam proteção, outros enfrentaram desvantagens competitivas; enquanto algumas empresas se ajustaram às novas tarifas, outras viram suas margens pressionadas e seus investimentos reduzidos. Esse descompasso ilustra como, em um jogo repetido de política comercial, cada decisão de curto prazo pode ter repercussões prolongadas, alterando a dinâmica do comércio global e criando novas incertezas sobre o futuro das relações comerciais entre as grandes potências.
"O que aprendemos da história é que ninguém aprende com a história." — Georg Wilhelm Friedrich Hegel (Filosofia da História, 1837)
Evidências Empíricas sobre os Impactos das Tarifas (2018-2020)
A guerra comercial entre os EUA e a China, iniciada pelo governo Trump, gerou uma extensa literatura acadêmica analisando seus efeitos sobre preços, comércio, emprego e crescimento econômico. Diversos estudos empíricos avaliaram os impactos macroeconômicos e setoriais das tarifas, utilizando métodos econométricos, modelos de equilíbrio geral e abordagens baseadas em microdados.
Incidência Tarifária e Impacto sobre Preços
Vários estudos demonstraram que as tarifas impostas pelos EUA foram repassadas integralmente aos consumidores americanos. Amiti, Redding & Weinstein (2019, AER) encontraram evidências robustas de que os preços de bens importados tarifados aumentaram quase na mesma magnitude das tarifas aplicadas, indicando baixa absorção do custo pelos exportadores estrangeiros. Além disso, Fajgelbaum et al. (2020, QJE) mostraram que o impacto da guerra comercial sobre os preços reduziu o bem-estar agregado da população americana, afetando desproporcionalmente os consumidores de baixa renda.
Impacto sobre Comércio e Setores Exportadores
As tarifas geraram impactos significativos sobre o fluxo comercial entre os EUA e a China. Cavallo, Gopinath, Neiman & Tang (2021, AER) analisaram microdados de transações comerciais e concluíram que os fluxos de importação dos EUA se ajustaram rapidamente às novas barreiras tarifárias, com mudanças de fornecedores para países como Vietnã e México. Em contrapartida, Bown (2020, JIE) demonstrou que as tarifas retaliatórias chinesas afetaram fortemente as exportações agrícolas dos EUA, particularmente soja e carne suína, resultando em uma contração significativa das vendas americanas no mercado chinês.
Emprego e Investimentos no Setor Industrial
Um dos principais objetivos da política tarifária de Trump era incentivar o crescimento da manufatura americana. No entanto, Handley et al. (2020, NBER) argumentaram que, apesar de algumas indústrias como aço e alumínio apresentarem aumentos temporários no emprego, os custos mais altos de insumos prejudicaram outros setores. De maneira similar, Pierce & Schott (2020, JPE) indicaram que o impacto líquido das tarifas foi negativo para a criação de empregos industriais, devido ao aumento dos custos de produção e à incerteza regulatória.
Incerteza Comercial e Queda no Investimento
A guerra comercial também gerou altos níveis de incerteza econômica, afetando investimentos empresariais. Caldara et al. (2020, AER) usaram um índice de incerteza política baseado em texto para demonstrar que a política tarifária reduziu os gastos de capital das empresas americanas, especialmente em setores dependentes de cadeias globais de suprimentos. Baker, Bloom & Davis (2019, NBER) reforçaram essa tese ao apontar que empresas americanas atrasaram ou reduziram investimentos devido à volatilidade da política comercial.
Impactos no Crescimento Econômico
Os efeitos agregados das tarifas sobre o PIB americano foram estudados por Gopinath et al. (2020, IMF Working Paper), que calcularam que a guerra comercial reduziu o crescimento dos EUA em aproximadamente 0,3% a 0,4% do PIB entre 2018 e 2019, devido à queda no comércio líquido e na atividade de investimento. Born & Müller (2021, JME) modelaram os efeitos macroeconômicos das tarifas usando um modelo DSGE e concluíram que, apesar dos ganhos pontuais para setores protegidos, o impacto geral foi negativo para o crescimento da economia americana.
Esse conjunto de estudos evidencia que as tarifas tiveram implicações amplas e heterogêneas, com impactos negativos líquidos sobre o bem-estar do consumidor, as exportações e os investimentos, embora tenham gerado benefícios temporários para setores específicos da indústria doméstica.
"O poder de tributar envolve necessariamente o poder de destruir." — John Marshall (McCulloch v. Maryland, 1819)
Reflexão Final: Tarifas e o Futuro da Economia Global
O estudo das tarifas revela que, ao longo da história, seu impacto foi determinado não apenas por razões econômicas, mas por contextos políticos e estratégicos. De Roma à era Trump, os governos impuseram tarifas não apenas para arrecadar ou proteger setores específicos, mas como uma forma de exercer poder sobre mercados e nações.
A teoria dos jogos nos mostrou que, em um mundo interdependente, tarifas não são um jogo de soma zero, mas um mecanismo de negociação e retaliação, onde a previsibilidade e o equilíbrio entre cooperação e protecionismo definem os vencedores e perdedores.
O que os dados empíricos nos dizem? Que a retórica protecionista pode gerar ganhos políticos de curto prazo, mas as consequências econômicas tendem a ser desorganizadas e custosas. Os achados acadêmicos dos papers confirmam que as tarifas da era Trump tiveram impactos assimétricos, beneficiando alguns setores enquanto penalizavam consumidores, exportadores e cadeias produtivas.
Assim, se a história nos ensina algo, é que as tarifas, quando usadas como arma política, tendem a seguir um padrão: primeiro, são apresentadas como uma solução para fortalecer a economia; depois, seus efeitos colaterais começam a aparecer; por fim, são repensadas ou revertidas quando os custos superam os benefícios. Esse ciclo pode continuar indefinidamente — mas sua repetição não significa inevitabilidade. A história das tarifas não é uma maldição, mas um reflexo das escolhas políticas e estratégicas de cada geração.
O verdadeiro desafio não está em evitar tarifas a todo custo, mas em compreender seus efeitos e saber quando usá-las de forma racional. No final, o que define o impacto de uma tarifa não é apenas sua alíquota ou incidência, mas o contexto e os incentivos que a sustentam.
"Quando os homens são livres para fazer o que quiserem, geralmente imitam uns aos outros." — Eric Hoffer (The True Believer, 1951)
Referências Bibliográficas
Amiti, M., Redding, S. J., & Weinstein, D. E. (2019). The Impact of the 2018 Trade War on U.S. Prices and Welfare. American Economic Review, 109(6), 2261-2284.
Fajgelbaum, P. D., Goldberg, P. K., Kennedy, P. J., & Khandelwal, A. K. (2020). The Return to Protectionism. Quarterly Journal of Economics, 135(1), 1-55.
Cavallo, A., Gopinath, G., Neiman, B., & Tang, J. P. (2021). Tariff Pass-Through at the Border and at the Store: Evidence from US Trade Policy. American Economic Review, 111(2), 535-581.
Bown, C. P. (2020). The 2018 Trade War and the US Economy: How Tariffs Affected Prices, Employment, and Growth. Journal of International Economics, 126, 103358.
Handley, K., Kamal, F., Monarch, R., & Pierce, J. (2020). Measuring the Unequal Gains from Trade: Evidence from the United States. National Bureau of Economic Research (NBER) Working Paper No. 26885.
Pierce, J. R., & Schott, P. K. (2020). Trade Liberalization and Mortality: Evidence from US Counties. Journal of Political Economy, 128(1), 225-276.
Caldara, D., Iacoviello, M., Molligo, P., Prestipino, A., & Raffo, A. (2020). The Economic Effects of Trade Policy Uncertainty. American Economic Review, 110(9), 2534-2575.
Baker, S. R., Bloom, N., & Davis, S. J. (2019). Measuring Economic Policy Uncertainty. National Bureau of Economic Research (NBER) Working Paper No. 25794.
Gopinath, G., Boz, E., Casas, C., Diez, F. J., Gourinchas, P.-O., & Plagborg-Møller, M. (2020). Dominant Currency Paradigm. IMF Economic Review, 68(1), 1-35.
Born, B., & Müller, G. J. (2021). Trade Wars and Macroeconomic Dynamics: A DSGE Perspective. Journal of Monetary Economics, 117, 1-20.
Uma das melhores cartas ja enviadas!!
Que aula!!